quinta-feira, 30 de setembro de 2010

O pecado de mudar

Alberto sempre foi um menino responsável. Passa horas em cima dos livros, não atrasava prazos de entrega de trabalhos e sempre tirava boas notas. Sempre foi cordial com as pessoas e sempre tentou ajudar a todos. Na escola sempre foi um bom aluno e na faculdade formou-se com louvor. Sempre teve a atenção e o carinho de todos os que viviam ao seu redor. Claro que muita gente não gostava de Alberto, que era muito bonzinho e tinha um charme magnético. Foi para o mercado de trabalho. Todas as empresas que receberam seu currículo ficavam impressionadas com a quantidade de cursos e conhecimentos ele tinha. Deu-se bem em todas as possíveis empresas. Todos adoravam aquele homem que era sempre correto, sério, bem apanhado e muito charmoso. Até que um dia ele se apaixonou.
Clara era uma moça muito interessante. Trabalhava como publicitária em uma agência que estava propondo uma nova forma de comunicação para a empresa que Alberto era gerente. Ele, assim que a viu, ficou fascinado. Cortejou-a. Ela, assustada com esses modos de rapaz inglês, sorriu e disse não. Ele a convidou para jantar. Ela recusou. Ele perguntou se ela gostava de cinema. Ela dizia adorar os filmes de Almodóvar. Ele chamou-a pra assistir Abraços Partidos. Clara disse não. Sempre dizia não aos convites dele.
Mas ele, como todo galante bom moço não desistia. Muitos outros convites fez, aos programas mais variados. Até para um sexo casual ele a convidou e foi respondido dessa última vez com um tapa. Ela sorriu e disse não todas às vezes, inclusive com o bofete que lhe deu. Um dia, cansado de tentar tantas vezes e cheio de coisas para fazer, Alberto entrou no elevador com ela e a cumprimentou respeitosamente. Ficou em silêncio grudado na parede do elevador pensando o que ela estaria pensando dele. Ela sorriu, disse bom dia e seguiu para a sala do chefe.
Por que será que ela não queria sair com ele? Por que não dava a ele a chance de tentar? Todos diziam que ele era um bom partido, ele sempre ouvia isso. Mas até aquela mulher aparecer em sua frente, nunca tinha se encantado tanto por alguém. Então, convicto de como poderia fazer bem a ela, Alberto parou o elevador quando eles estavam novamente sozinhos dentro daquela gaiola de ferro. Olhou-a enquanto ela pegava um batom da bolsa e dizia para ele seguir com o elevador.
Ele disse que queria saber porque ela nunca lhe dava uma chance. Ele era um moço honesto, trabalhador, promissor, interessante e poderia fazê-la feliz, porque ela não via isso. Clara mudou a expressão da face de angústia. Ela sorriu sem graça e disse: “-Não quero me aproximar de você. Perfeito, bonito, inteligente, promissor. É demais pra mim. Sou humana, erro, gosto de beber e tenho erros”.
Alberto apertou o botão que fazia o elevador andar. Eles pararam no andar onde Clara iria ficar. Ela saiu sem graça e muito silenciosa. Ele desceu, chegou até seu carro e saiu da empresa. Foi a primeira vez que ele decidiu matar o expediente. Foi até a praia. Tirou todo o terno, os sapatos e nu pulou no mar e sentiu a água salgada levando embora tudo que ele tinha vivido ou acreditado. Decidiu que seria diferente, que seria mais intenso, mais humano, que cometeria mais erros, que seria feliz.
Colocou o pesado terno e entrou no carro. Foi ultrapassar um caminhão, pela primeira vez, sentiu-se vivo de desrespeitar às regras e entrou em desespero ao se dar de frente com uma van escolar, desviou, bateu em um poste e morreu cometendo seu primeiro erro.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

O pecado de crer

Beatriz era muito religiosa. Desde quando começou a falar, já dizia coisas sobre Deus. Muitos diziam que ela era santa, era algum anjinho desses que vêm a terra para levar luz às pessoas. Sempre gostou de caminhar entre os "irmãos" dando sorrisos e cumprimentando a todos. Era doce e muito fervorosa. Sabia como ninguém compreender os sermões que os padres davam durante a missa. Tentava se abster de todos os pecados que pudesse. Levava boas palavras para pessoas que ela julgava perdidas e tentava sempre alimentar as esperanças daqueles com quem vivia.
Estava na frente de uma lagoa, em uma noite límpida, olhando o milagre da vida e as belezas que "seu" Deus havia criado. Um homem passou por ela e quando a menina disse boa noite, ele disse que não era um bom momento. Sempre com sua mania de ajudar, ela o seguiu e viu que ele se colocava diante da ponte para pular. Desesperada, Beatriz, que tem na origem do nome o significado de enviada por Deus, foi até ele e perguntou porque ele acabaria com sua vida. Ele a olhou muito plácido e disse que nada mais tinha sentido. Era dependente químico, havia sido criado por um padrasto horrível que o molestava e o agredia, tentou várias vezes ser feliz, amou muitas pessoas, tentou conseguir um emprego, fazer da sua vida algo digno, mas nunca conseguiu. Ela, que a tudo ouvia, pensava que talvez se ele soubesse que Deus o amava, ele não faria isso. Sorriu complacente e começou a dizer sobre o que acreditava e como era importante que ele soubesse que Deus o amava e que ele poderia ter uma boa vida, que ele devia tentar mais uma vez, porque a divindade olharia por ele.
O homem sorriu, perguntou qual era seu nome, ela o respondeu dizendo que se chamava Beatriz e que se ele quisesse conversar poderiam passar bastante tempo dialogando e que ela tentaria o ajudar. Ele disse que ela já havia ajudado em sua decisão. O sujeito abriu os braços, e lentamente, enquanto as lágrimas escorriam pelo seu rosto, começou a orar. Lágrimas, ele e suas palavras se espatifaram contra o asfalto. Beatriz chorou e naquele momento esperou ouvir ou sentir a presença de Deus. E o vento soprou friamente levando aquele odor de tristeza.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

O pecado da fome

Carlos era um homem que tinha fome. Não uma fome comum, como aquela que todos os dias saliva sua boca próximo das 11 horas da manhã. Era uma fome intensa, que o fazia pensar em quitutes e guloseimas em todos os minutos de sua vida. Queria sempre repetir o prato, comer mais um, pegar outro pra depois. E nunca estava satisfeito. Sempre sentia fome.
Uma tarde, dessas quentes e preguiçosas que se esgueiram, ele passou na frente de uma doceria. E, no balção de doces, talvez ele tivesse encontrado algo que mataria sua fome para sempre. Jeanine, uma moça muito bonita e de mãos delicadas, colocava um bolo de chocolate naquele momento. Como aquela cena lhe dava fome.
Ele entrou, pediu um café e um pedaço do bolo. Jeanine sorriu. Retirou uma generosa fatia e pegou uma xícara de café. E em segundos, os dois recipientes estavam limpos, como se nada tivesse sido colocado. Ele repetiu o pedido. Ela, serviu mais uma vez. E mais alguns segundos, ele repetiu o pedido com a boca ainda cheia e manchada de chocolate. Enquanto ela servia, ele lhe contou que nunca tinha provado algo tão gostoso. Ela sorriu. Colocou o prato e a xícara e enquanto Carlos levantava o garfo ela disse: "-Se você gostou do sabor, agora experimente comer cada garfada delicadamente, como se fosse sua última refeição". E, de repente, o homem parou, ficou pensando nas palavras daquela doce doceira e se conseguiria fazer aquilo. Imagina, comer lentamente, a última refeição. Tirou uma teco do bolo, colocou na boca e começou a mastigar. Os gostos foram povoando a sua boca. No primeiro gole de café, o amargor e o tom doce do final daquela golada, foram queimando e refrescando suas papilas. Depois de uma hora degustando aquele prato, Carlos terminou sua refeição. Sentiu-se tão cheio, tão satisfeito que tentava compreender toda a dinâmica do mundo. Pagou, agradeceu e saiu. Foi viver, afinal, agora sim ele sabia como funcionava toda aquela ideia de existência.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

O pecado de acreditar

Ele a amou a primeira vez que a viu. Simples assim, como a relva orvalhada no começo da manhã. Ela tinha toda a vivacidade que ele precisava. Era terna, era altiva, era interessante como um botão de rosa ao despertar. Se conheceram num baile de carnaval e, como por coincidência, ele estava de Pierrô e ela de Columbina. Foram feitos para sempre naquela eterna caça de um gato em busca de sua presa.
Passava dias a esperá-la depois do fatídico baile, no caminho que ela fazia todos os dias à tarde, em direção ao estúdio de ballet. Mesmo que pareça piada, seu apartamento ficava na rua que todos os dias a bela moça passava com as sapatilhas penduradas nas mãos e, docemente, ela seguia pela rua desviando com piruetas de placas e transeuntes que cruzavam seu caminho. Ele a via resplandescente, iluminada, como uma estrela em sua aurora.
E em sua volta, à noite, mantinha um sorriso doce como se sua tarde tivesse sido tão perfeita como era sua existência. Depois de vê-la sumir em uma esquina, o poeta se colocava na frente de seu computador e desatava a digitar. Eram estalos eufóricos como se ele estivesse atrasado para entregar a última matéria que compunha a página principal do periódico da próxima manhã.
E, em tantos contos e poemas, imaginava como seria a partir do momento em que pudesse tocá-la e beijá-la e sentí-la. Vivia esperando suas passadas pela janela de sua casa e criava sonhos e pensamentos ideais de como seria perfeita sua vida assim que ela fizesse parte de seu cotidiano. Alguns meses passaram...A menina já não passava mais pela rua em frente a sua janela. Havia morrido em um desastroso acidente no mar. A lancha onde estava havia batido contra rochas e o mar engoliu sua beleza.
E nos mesmos horários, o velho botava-se a escrever sobre o prazer que teria quando ela fizesse parte da sua vida. E ele lembrava todos os dias do primeiro sorriso que ela deu para ele, um dia antes do acidente, há 50 anos do hoje que ele vivia. Amar é apegar-se ao que sentimos, não ao que existe.

domingo, 26 de setembro de 2010

O pecado de ser

Ele nasceu. Tão belo e interessante como essas estrelas pequenas que a gente descobre em noites de céu claro. Estava ali um pequeno abençoado pelos olhos de familiares. Tinha os olhos acinzentados, tinha um ar ingênuo como muitos dos bebês que nascem por aí. Era um menino. A partir desse momento e para toda sua existência carregaria no mundo as marcas que um menino deve ter. Seu quarto era azul,cheio de carrinhos e heróis que o pai gostava. Sua mãe o ninava esperando que ele crescesse e fosse um grande homem. O que ele teria feito para ter tantas responsabilidades? Nascer já bastava.
E esse menino crescia ao redor de coisas preparadas para desde antes do nascimento dele. Teria o mesmo do avô materno e a partir disso, levaria para sempre aquela expectativa de ser. A família dizia que ele seria engenheiro, médico ou advogado. Brincaria de carrinho, teria vários "ralados" de skate, de bicicleta. Teria um cachorro felpudo e grande. Seria menino.
Aos poucos junto com a idade, o menino começou a falar. E queria rosa, enquanto os presentes eram todos azuis. Seria o herdeiro do nome, mais que isso, do sobrenome da família. Nasceu para herdar as ordens de um bom patriarca. A vida foi passando. Cresceu tanto quanto podia e, mesmo não querendo, jogava futebol, vivia rodeado de meninos e não entendia como eles podiam ser tão agressivos. Apanhou, bateu, cresceu. Se apaixonou por longos cabelos loiros. Uma professora do primário. Bela, tão linda e intensa quanto o Sol. Cresceu...sofreu por paixões que não conseguia viver.
E, de repente, já tinha dezesseis, pelos nas pernas, pelos na virilha, pelos no rosto. Não gostava de ter aquela aparência. Mas continuou crescendo. Queria ter a pele lisa, queria ter sorrisos mais doces. Foi aos poucos se afastando de pessoas. Não gostava de conviver com aqueles que impunham tanto. Não queria ser como todos, queria ser diferente. Entre medicina, engenharia ou direito, ele foi fazer cênicas e em sua primeira vez no palco se sentiu tão a vontade com a ideia de ser alguém que não se era. Não precisava usar o nome do avô, nem ter pelos pelo corpo. Se sentia bem quando sorria delicadamente entre palmas fervorosas e luzes que clareavam seus belos olhos, já castanhos, já humanos, já mais pecadores.
E aos poucos, já não usava mais tênis estilosos e nem calças jeans, já não precisava mais de cintos lhe apertando os quadris. Usava um solto vestido branco, e com os pés descalços ria e rodava sobre o palco, contando a história de uma moça. Uma que vivia presa numa torre e que seria uma princesa esquecida. Como essas histórias que a gente ouve quando criança. Era tão bom estar em um personagem.
Foi tirado a força do palco, seu pai dizia-se envergonhado com a "bichice" que ele dramatizava. Ele era homem. HOMEM! E com a maquiagem toda desmanchada entre lágrimas e com o corpo todo dolorido das puxadas que sofreu do pai e de toda a sociedade. Ele não era uma mulher, não tinha o direito de estar em um vestido. E nem de ser feliz não levando o nome de seu avô. Devia voltar à realidade. Ser engenheiro, médico ou advogado. Devia ser um homem de família.
Não foi. Em uma noite sem estrelas, as luzes de seus olhos apagaram enquanto um desfile vermelho escorria pelo vestido branco que ele vestia e uma onda negra que caía de seus olhos deixou seu rosto todo desfigurado pela maquiagem que já escondia alguém que ele não era. Não era ele. Não era sua personagem. Com tantas exigências ele foi perdendo sonhos como agora o sangue manchava de vermelho o vestido que lhe caia tão bem. Queria ser livre e talvez agora fosse, já com os olhos pintados de um preto fosco e seu corpo frio, estirado em um palco, dramatizando o eterno pecado de ser alguém que não queria ser tudo que lhe foi imposto.