domingo, 26 de setembro de 2010

O pecado de ser

Ele nasceu. Tão belo e interessante como essas estrelas pequenas que a gente descobre em noites de céu claro. Estava ali um pequeno abençoado pelos olhos de familiares. Tinha os olhos acinzentados, tinha um ar ingênuo como muitos dos bebês que nascem por aí. Era um menino. A partir desse momento e para toda sua existência carregaria no mundo as marcas que um menino deve ter. Seu quarto era azul,cheio de carrinhos e heróis que o pai gostava. Sua mãe o ninava esperando que ele crescesse e fosse um grande homem. O que ele teria feito para ter tantas responsabilidades? Nascer já bastava.
E esse menino crescia ao redor de coisas preparadas para desde antes do nascimento dele. Teria o mesmo do avô materno e a partir disso, levaria para sempre aquela expectativa de ser. A família dizia que ele seria engenheiro, médico ou advogado. Brincaria de carrinho, teria vários "ralados" de skate, de bicicleta. Teria um cachorro felpudo e grande. Seria menino.
Aos poucos junto com a idade, o menino começou a falar. E queria rosa, enquanto os presentes eram todos azuis. Seria o herdeiro do nome, mais que isso, do sobrenome da família. Nasceu para herdar as ordens de um bom patriarca. A vida foi passando. Cresceu tanto quanto podia e, mesmo não querendo, jogava futebol, vivia rodeado de meninos e não entendia como eles podiam ser tão agressivos. Apanhou, bateu, cresceu. Se apaixonou por longos cabelos loiros. Uma professora do primário. Bela, tão linda e intensa quanto o Sol. Cresceu...sofreu por paixões que não conseguia viver.
E, de repente, já tinha dezesseis, pelos nas pernas, pelos na virilha, pelos no rosto. Não gostava de ter aquela aparência. Mas continuou crescendo. Queria ter a pele lisa, queria ter sorrisos mais doces. Foi aos poucos se afastando de pessoas. Não gostava de conviver com aqueles que impunham tanto. Não queria ser como todos, queria ser diferente. Entre medicina, engenharia ou direito, ele foi fazer cênicas e em sua primeira vez no palco se sentiu tão a vontade com a ideia de ser alguém que não se era. Não precisava usar o nome do avô, nem ter pelos pelo corpo. Se sentia bem quando sorria delicadamente entre palmas fervorosas e luzes que clareavam seus belos olhos, já castanhos, já humanos, já mais pecadores.
E aos poucos, já não usava mais tênis estilosos e nem calças jeans, já não precisava mais de cintos lhe apertando os quadris. Usava um solto vestido branco, e com os pés descalços ria e rodava sobre o palco, contando a história de uma moça. Uma que vivia presa numa torre e que seria uma princesa esquecida. Como essas histórias que a gente ouve quando criança. Era tão bom estar em um personagem.
Foi tirado a força do palco, seu pai dizia-se envergonhado com a "bichice" que ele dramatizava. Ele era homem. HOMEM! E com a maquiagem toda desmanchada entre lágrimas e com o corpo todo dolorido das puxadas que sofreu do pai e de toda a sociedade. Ele não era uma mulher, não tinha o direito de estar em um vestido. E nem de ser feliz não levando o nome de seu avô. Devia voltar à realidade. Ser engenheiro, médico ou advogado. Devia ser um homem de família.
Não foi. Em uma noite sem estrelas, as luzes de seus olhos apagaram enquanto um desfile vermelho escorria pelo vestido branco que ele vestia e uma onda negra que caía de seus olhos deixou seu rosto todo desfigurado pela maquiagem que já escondia alguém que ele não era. Não era ele. Não era sua personagem. Com tantas exigências ele foi perdendo sonhos como agora o sangue manchava de vermelho o vestido que lhe caia tão bem. Queria ser livre e talvez agora fosse, já com os olhos pintados de um preto fosco e seu corpo frio, estirado em um palco, dramatizando o eterno pecado de ser alguém que não queria ser tudo que lhe foi imposto.

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