domingo, 24 de outubro de 2010

O pecado de pensar

Era como se a vida fosse apenas um plano. Marina sabia de tudo. Sempre sabia. Planejava cada passo, tinha horários muito regrados. Não atrasava e nem queria saber se precisava de mais ou menos tempo. Seguia a risca suas regras. Era sempre muito meticulosa e por sua organização sempre conseguiu ter o controle de cada situação, de todos os atos e do que tinha em mente. Não perdia tempo e nem sofria e nem chorava e nem amava. Não havia colocado tempo pra isso em suas imensas listas de afazeres.
Uma tarde primaveril foi a um bosque. Havia separado um tempo para fazer uma caminhada saudável por entre as árvores. Corria, de vez em quando, para poder tirar um pouco de sua comodidade. Mas era sempre o mesmo horário e sempre nos dias em que ela conseguia encaixar. Sua meticulosidade assustava tanto quanto sua vontade de cumprir cada tarefa das enfadonhas listas.
Então, naquela corrida viu vários casais felizes, passeando com os filhos, ou namorando em uns bancos, ou indo para o cinema. Deu vontade e ela marcou em sua lista a prioridade da semana. Apaixonar-se. E passou um dia, uma semana, um mês, um ano e de repente aquela prioridade era algo que ela não conseguia cumprir. Precisava encontrar alguém que a compreendesse e que entrasse em suas listas.
Então em uma cafeteria onde todos os dias ia tomar seu café da manhã, um rapaz charmoso foi até ela e lhe deu seu telefone. Ligaram-se, combinaram um jantar. Tudo encaixado como as outras atividades. Entretanto, o táxi atrasou-se, ela chegou tarde e ele já estava saindo. Entre desculpas e conversas decidiram ir até um outro lugar comer. Pararam em uma barraca de cachorro quente, riram, conversaram e começaram a se gostar. Todas as listas de Marina não davam certo mais. Sempre que marcava algo, pensava nas listas que ele programava. Mas o rapaz não tinha listas, vivia ao bel prazer do tempo e da sorte. Marina aprendeu que podia sorrir sem ter que marcar horário para isso. Sua vida mudou e suas listas perderam a graça.

domingo, 17 de outubro de 2010

O pecado da ironia

Era uma tarde chuvosa. Carolina esperava alguém aparecer. Qualquer pessoa que lhe tirasse daquela vida tão parada e tão insossa que vivia a algum tempo. Já estava cansada do cotidiano que todo dia incomodava por ser exatamente o mesmo. Saia, escrevia sobre pessoas e fatos e voltava. E todos os dias tinha diferentes histórias que eram na verdade todas uma só. Ela era responsável pelo obtuário de pessoas da cidade. Já tinha se arriscado a escrever sobre outras coisas. Gostava de contar sobre a vida, mas seu enjoo a tudo e a tanta coisa, dava a ela o tempero exato para ser uma boa profissional em obtuários: ela simplesmente não se importava. E essa sua vida já tinha ficado monótona. No começo, era interessante vasculhar documentos, conversar com familiares. Saber a dose exata do sofrimento e em que partes ela podia carregar nas tintas. Nunca errou em qualquer dos textos mórbidos. Escrevia como aqueles que choravam, repleta de emoção. Mas, então, a rotina foi lhe tomando conta e nada era tão interessante. Às vezes, com semanas ensolaradas e felizes não escrevia muito. Em outras, tinha quinze mortes trágicas para contar e como suas famílias sofreram.
Mas Carolina, naquela tarde chuvosa dentro do café, pensava em algo novo que pudesse fazer. Algo com diferentes tons, diferentes momentos, que lhe tirasse um pouco de tanto preto e mortalhas que via quase todos os dias. Queria algo que fizesse o mundo saber da importância de se viver. A morte já tinha lhe enchido. Pensava em diversos projetos que tinha deixado para trás. Dá ideia de uma revista sobre pesca, ou até mesmo fazer algo interessante em tevê. Um documentário sobre a vida e seus deslizes casuais.
Então, uma ideia lhe tomou a cabeça. Porque não entrevistar diversas pessoas sobre o que elas queriam saber? Talvez ela tivesse uma ideia surpreendente e pudesse mudar o rumo da sua vida. Decidiu que faria tudo diferente. Que iria se apaixonar, emagrecer, pintar o cabelo, sonhar com novas ideias e que iria mudar.
Pela manhã, mais um obtuário de Carolina saiu no jornal. Este, escrito por ela e sobre ela. Decidiu tomar um outro caminho para casa quando, no escuro e com seu casaco preto que sempre lhe foi útil, foi atropelada por um caminhão de mudança. A vida planejada talvez tivesse que esperar para a próxima vida.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

O pecado de enxergar

Hoje foi um dia nublado. Como desses dias que a gente prefere não sair para não se molhar. Antônio decidiu ir até a janela, com sua câmera fotográfica, olhar os passantes e registrar suas vidas em alguns momentos pintados com luz. Tinha esse costume doce de registrar pessoas e vidas, para depois, no silêncio de seu banheiro-sala de revelação, poder imaginar quem eram as pessoas, o que viviam , com o que sonhovam, se amavam, se tinham grandes objetivos e tantos outros detalhes que são úteis para todas as vidas humanas. Alguns amigos brincavam que Antônio gostava desse voyerismo por pura falta do que fazer. Depois do acidente que teve vivia em um apartamento aconchegante e poucos eram os motivos que lhe tiravam dali. Alguns amigos, alguns eventos e a fome o tiravam daquele silencioso ambiente em que ele passava horas com sua câmera a captar a vida dos passantes,sem grandes anseios, apenas para imaginar o que poderia acontecer, como esteve fazendo no dia de hoje. Com a câmera posicionada e os dedos rápidos, girava a objetiva e eternizava várias cenas. O silêncio do seu apartamento se casava perfeitamente com os cliques que sua câmera soltava no momento exato de registrar um transeunte.
Um dos amigos decidiu subir e ver as últimas fotos que Antônio amorosamente tirava. Ele via poesia em cada uma das cenas do fotógrafo. Tocou a campainha e o mundo do fotógrafo. Ele largou a câmera em sua mesinha de madeira, que ficava ao lado da janela e foi até a porta. Sorriu. "-Olá Antônio, é o Marcos, como está?". "-Olá, Marcos, entre amigo, estou bem. Acabei de me colocar na janela, pretendo tirar algumas pelas fotos hoje". "-Como sempre, como sempre!". Os dois riram. Marcos foi até o varal de fotos e começou a elogiar o trabalho de Antônio. Este, estava entretido entre os movimentos de closes e ângulos experimentais. "-E então Antônio, já conversou com os médicos". "-Já sim...semana que vem faço a operação". "-E está com medo?". O fotógrafo parou, encostou a câmera no peito. "-Tenho apenas medo de não dar certo. Essa escuridão mesmo sendo pacífica, me assusta. Sem contar que se não voltar a enxergar, acabarei tendo que me livrar de quilos de fotos que registrei do mundo enquanto não pude vê-lo". Marcos apenas chorava baixinho ao ver com tato todos aqueles registros de um cego permanente.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

O pecado de escolher

Nem todos são otimistas. Nem todos são pessimistas. Nem todos são bons e nem todos são ruins. Julgar não cabe a nós, pobres humanos cheios de defeitos. Cecília sempre pensava nestas frases.Às vezes, não nessa ordem, embora pensasse com frequência nos atos e desatos que a vida dá. Não gostava de escolher e preferia sempre não opinar. Era a melhor maneira de viver, segundo ela. Dizia que ao escolher um lado estava fadada a levar para sempre aquela escolha. Não que estivesse errada. Nem que estivesse certa. Simplesmente preferia que a vida a levasse, para longos passeios com diversas companhias sempre esperando por novas histórias, por novos contos mesmo que desses o que ela conhecia ficava só para si. Não era a favor do aborto. Mas, não sabia se era contra. Não gostava de homossexuais, mas também não tinha nenhum apreço pelos heterossexuais. Pensava sempre na porção exata e em como ela poderia ficar entre tudo. Sempre no meio de tudo. Um dia, enfim, no meio da linha veio um trem. E Cecília foi divida ao meio. Um lado lágrimas, do outro poesia.

sábado, 9 de outubro de 2010

O pecado de parar

Severino sempre foi um homem pacato. Entre tantos desejos, talvez não ter preocupações fosse o mais presente em sua vida. O ser não se preocupava com muita coisa. Se as pessoas lhe ofendiam. Ele fingia não ouvir e, já distante da pessoa, resmungava qualquer coisa sobre o fato de não se importar. Não gostava de ter compromissos, tanto que andava pela cidade sem relógio para poder se desculpar pelos atrasos ou adiantamentos em seus encontros pré-marcados. Sempre pensava que poderia ser feliz assim. E em sua calmaria nunca deu-se ao trabalho de se importar com prazos e metas finais. Cumpria tudo que lhe pediam, mas tinha seu próprio tempo para agir. Não gostava de regras, mas cumpria muitas delas para não ser questionado depois. Enamorou-se, casou, teve casa, teve carro, teve amigos, teve tudo que qualquer homem que andou pela terra e quis ter, teve.
Entre seus quereres, sempre manteve o modo não preocupado e de não magoar as pessoas. Seus filhos e sua esposa sempre lhe diziam para dar mais atenção as coisas, mas Severino negava-se a necessidade de se preocupar tanto com tudo. Sua filha mais nova, Helena, que era como a mãe, sempre dinâmica, sempre atenta, sempre cumpridora fiel de prazos e datas decidiu-se casar e para Severino, aquilo iria mesmo acontecer, como todas as coisas aconteciam no mundo.
A menina preparou seu enxoval, organizou a festa, convidou o povo, escolheu as roupas e entre tantos afazeres acabou irritada e nervosa. E cada vez que via o pai, se irritava mais com o modo parado de ser. Sempre ralhando com o homem, disse que ele deveria estar em casa às 4 da tarde para poderem seguir para a Igreja no carro que ela tinha escolhido e o casamento deveria começar pontualmente.
Severino, foi-se. Arrumou-se, penteou os cabelos e às 4 e 10 depois de muitos xingamentos da filha estava no carro com ela. A noiva desesperada com o atraso e o cronograma do casamento apressava o motorista que já estava ficando irritado. Severino apenas dizia para a menina ter calma, que aquele nervoso todo só faria mal. O motorista virou-se para concordar com Severino e deu de frente com um caminhão. Morreram Severino e o motorista e Helena entrou em coma. Foram anos até que a noiva abriu os olhos para o mundo. Seus sobrinhos-netos corriam pelo quarto e quando sua irmã a viu de olhos abertos ficou aos prantos. A moça de 55 anos não entendia porque aquela senhora chorava tanto. A mana contou tudo que havia acontecido e dos 30 anos que ela passara em cima daquela cama, naquele quarto e nas coisas que ela não foi e não participou. Helena parou. Chocada, se colocou em frente a um espelho no quarto de desabou em lágrimas.
A irmã perguntou porque chorava. A mulher só teve ar para dizer: "-Era isso que o pai queria? Que eu tivesse calma e eu não tive!". Foi tanto desespero que um infarto dominante matou Helena, que nunca vivera para ver o que a vida reserva de bom.

domingo, 3 de outubro de 2010

O pecado de esquecer

Antigamente, todos viviam em intensa harmonia. Segundo Rufus Wainwright, éramos seres estranhos com a cabeça muito grande e duas faces. Tínhamos dois pares de pernas e quatro braços e podíamos cantar enquanto líamos. Éramos completos. Até que os deuses, por medo de nossas ações, quiseram nos castigar. Então Zeus usou seus raios e dividiu-nos em dois. E um deus hindu curou nossa ferida e deixou um sinal na barriga para que não nos esquecêssemos que não podemos confrontar os deuses. E os deuses do Nilo chamaram uma tempestade e nos separaram...
Ouvindo "The origin of love", Camila ainda pensava no amor e nas coisas bonitas que já havia trocado com aqueles que amara. A casa estava escura, e sentada num canto da cama tomava um cálice de vinho. Sentia-se tão fria e inerte. As lembranças iam, aos poucos, lhe tirando o calor e fazendo parecer que cada vez ficava mais escuro. Entretanto, ainda eram 4h35 da manhã e a vida estava começando a acordar. Ela ainda tinha a maquiagem toda borrada e o sorriso quebrado. Ela já não tinha os cabelos penteados e nem o doce ardor dos olhos de quem sonha. Apenas a tristeza, a embriaguez e o silêncio a inundavam. A garrafa já estava vazia de vinho e Camila já não tinha uma gota de esperança. Decidiu ir para a sacada. Os cigarros que ela havia jogado estavam todos pela metade, em volta de seus pés. O vento era frio, mas de um frio aconchegante. Sentiu saudades da época de escola, do primeiro sutiã, do último namorado. Mas não se lembrava de mais nada, todas essas memórias eram vagas, borrada por uma espécie estranha de embriaguez. Não era o vinho. Ela estava farta do mundo. Pensou em pular. Acabar com tudo. Subiu na grade. Ouviu o vento. E de repente esqueceu pelo que estava ali. Desceu. Jogou-se na cama e dormiu pesadamente. No outro dia, a tarde, a luz do Sol que entrava pela janela acordou-a delicadamente. Camila foi para a rua, voltou ao trabalho, aos compromissos e a vida pacata e insossa que levava há anos, desde que perdeu seu último amor. Foram 60 anos de puro amargor e um ataque cardíaco fulminante que fizeram com que ela soubesse que ainda tinha um coração.