sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

O pecado da ignorância

Ignorar. Entre os mais vis e baixos instintos humanos, o ato de ignorar normalmente não está ligado a pessoas ignorantes. Francisco sabia disso. Ele gostava de ler Saramago, perdia algumas horas pensando no interessante processo que Clarice tinha ao entrar em estado de epifania e passava algum tempo tentando decifrar as saídas psicológicas de David Lynch em seus psicodélicos filmes sobre a humanidade ou a falta dela. Não poderíamos chamar Francisco de ignorante. Entretanto, era uma de suas sensações mais prazerosas quando alguém lhe indagava de algo e o intelectual apenas olhava para o nada como se o ar estivesse menos fresco depois daquela ínfima dúvida. Francisco se preocupava com os grandes projetos da humanidade. Com a cultura, a política, o poder, a educação e as necessidades básicas que um indivíduo necessitava ter para não ser um bárbaro. Era extremamente contra coisas que ele considerava fúteis. Moda, comportamento e revistas "de mulherzinha" não eram nem citadas em suas rodas de intelectuais bem formados nas cátedras cheias de detalhes de mármore, onde se discutiam da epigênese ao fim do mundo.
Não gostava de crianças que não soubessem fazem boas perguntas. Não gostava de adultos que não conseguiam formular boas respostas. Era um homem desses que a gente ouve falar em livros antigos como os "detentores do conhecimento". Suas horas eram dedicadas a intelectualidade. Seus olhos eram rápidos e viajavam como foguetes entre os textos, os livros e os ensaios científicos. Entretanto, a sua melhor capacidade era ignorar. Não se preocupava com o clima. Não era cheio de sentimentalismos, não chorava por qualquer coisa. Na verdade, quem conheceu Francisco acreditava que ele não chorava por nada. Era contido e inteligente. Apenas. Um dia, uma pequena mancha apareceu em seu braço. Anos depois de sua morte trágica, por um câncer que lhe tomou o corpo, que estava divido como um quebra-cabeça em cima de uma bancada, em uma aula de anatomia, o professor explicava que as pessoas deviam se atentar aos detalhes. Doenças e amores mal resolvidos não são coisas que se pode ignorar.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

O pecado de ansiar

Tiago queria tudo. Todos os sonhos mais altos e nobres que uma pessoa poderia ter. Era um bom garoto, foi um bom aluno e sempre fez tudo que pode para conquistar grandes coisas. Sempre foi sedento. Mas nem tudo ocorre da maneira que esperamos. Por vezes, Tiago espreitava as oportunidades para saber para onde ir. E não sabia para onde ir, mas isso não importava. A intenção era seguir. Crescer. Ser alguém. Seus objetivos estavam ao redor disso. E ele não sabia esperar. Sempre seguia porque o que podia fazer dependia dele. Criava, produzia, melhorava...mas nem tudo cabia à ele...entrou em crise. Nem tudo cabe a nós...tente...Mude...

domingo, 24 de outubro de 2010

O pecado de pensar

Era como se a vida fosse apenas um plano. Marina sabia de tudo. Sempre sabia. Planejava cada passo, tinha horários muito regrados. Não atrasava e nem queria saber se precisava de mais ou menos tempo. Seguia a risca suas regras. Era sempre muito meticulosa e por sua organização sempre conseguiu ter o controle de cada situação, de todos os atos e do que tinha em mente. Não perdia tempo e nem sofria e nem chorava e nem amava. Não havia colocado tempo pra isso em suas imensas listas de afazeres.
Uma tarde primaveril foi a um bosque. Havia separado um tempo para fazer uma caminhada saudável por entre as árvores. Corria, de vez em quando, para poder tirar um pouco de sua comodidade. Mas era sempre o mesmo horário e sempre nos dias em que ela conseguia encaixar. Sua meticulosidade assustava tanto quanto sua vontade de cumprir cada tarefa das enfadonhas listas.
Então, naquela corrida viu vários casais felizes, passeando com os filhos, ou namorando em uns bancos, ou indo para o cinema. Deu vontade e ela marcou em sua lista a prioridade da semana. Apaixonar-se. E passou um dia, uma semana, um mês, um ano e de repente aquela prioridade era algo que ela não conseguia cumprir. Precisava encontrar alguém que a compreendesse e que entrasse em suas listas.
Então em uma cafeteria onde todos os dias ia tomar seu café da manhã, um rapaz charmoso foi até ela e lhe deu seu telefone. Ligaram-se, combinaram um jantar. Tudo encaixado como as outras atividades. Entretanto, o táxi atrasou-se, ela chegou tarde e ele já estava saindo. Entre desculpas e conversas decidiram ir até um outro lugar comer. Pararam em uma barraca de cachorro quente, riram, conversaram e começaram a se gostar. Todas as listas de Marina não davam certo mais. Sempre que marcava algo, pensava nas listas que ele programava. Mas o rapaz não tinha listas, vivia ao bel prazer do tempo e da sorte. Marina aprendeu que podia sorrir sem ter que marcar horário para isso. Sua vida mudou e suas listas perderam a graça.

domingo, 17 de outubro de 2010

O pecado da ironia

Era uma tarde chuvosa. Carolina esperava alguém aparecer. Qualquer pessoa que lhe tirasse daquela vida tão parada e tão insossa que vivia a algum tempo. Já estava cansada do cotidiano que todo dia incomodava por ser exatamente o mesmo. Saia, escrevia sobre pessoas e fatos e voltava. E todos os dias tinha diferentes histórias que eram na verdade todas uma só. Ela era responsável pelo obtuário de pessoas da cidade. Já tinha se arriscado a escrever sobre outras coisas. Gostava de contar sobre a vida, mas seu enjoo a tudo e a tanta coisa, dava a ela o tempero exato para ser uma boa profissional em obtuários: ela simplesmente não se importava. E essa sua vida já tinha ficado monótona. No começo, era interessante vasculhar documentos, conversar com familiares. Saber a dose exata do sofrimento e em que partes ela podia carregar nas tintas. Nunca errou em qualquer dos textos mórbidos. Escrevia como aqueles que choravam, repleta de emoção. Mas, então, a rotina foi lhe tomando conta e nada era tão interessante. Às vezes, com semanas ensolaradas e felizes não escrevia muito. Em outras, tinha quinze mortes trágicas para contar e como suas famílias sofreram.
Mas Carolina, naquela tarde chuvosa dentro do café, pensava em algo novo que pudesse fazer. Algo com diferentes tons, diferentes momentos, que lhe tirasse um pouco de tanto preto e mortalhas que via quase todos os dias. Queria algo que fizesse o mundo saber da importância de se viver. A morte já tinha lhe enchido. Pensava em diversos projetos que tinha deixado para trás. Dá ideia de uma revista sobre pesca, ou até mesmo fazer algo interessante em tevê. Um documentário sobre a vida e seus deslizes casuais.
Então, uma ideia lhe tomou a cabeça. Porque não entrevistar diversas pessoas sobre o que elas queriam saber? Talvez ela tivesse uma ideia surpreendente e pudesse mudar o rumo da sua vida. Decidiu que faria tudo diferente. Que iria se apaixonar, emagrecer, pintar o cabelo, sonhar com novas ideias e que iria mudar.
Pela manhã, mais um obtuário de Carolina saiu no jornal. Este, escrito por ela e sobre ela. Decidiu tomar um outro caminho para casa quando, no escuro e com seu casaco preto que sempre lhe foi útil, foi atropelada por um caminhão de mudança. A vida planejada talvez tivesse que esperar para a próxima vida.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

O pecado de enxergar

Hoje foi um dia nublado. Como desses dias que a gente prefere não sair para não se molhar. Antônio decidiu ir até a janela, com sua câmera fotográfica, olhar os passantes e registrar suas vidas em alguns momentos pintados com luz. Tinha esse costume doce de registrar pessoas e vidas, para depois, no silêncio de seu banheiro-sala de revelação, poder imaginar quem eram as pessoas, o que viviam , com o que sonhovam, se amavam, se tinham grandes objetivos e tantos outros detalhes que são úteis para todas as vidas humanas. Alguns amigos brincavam que Antônio gostava desse voyerismo por pura falta do que fazer. Depois do acidente que teve vivia em um apartamento aconchegante e poucos eram os motivos que lhe tiravam dali. Alguns amigos, alguns eventos e a fome o tiravam daquele silencioso ambiente em que ele passava horas com sua câmera a captar a vida dos passantes,sem grandes anseios, apenas para imaginar o que poderia acontecer, como esteve fazendo no dia de hoje. Com a câmera posicionada e os dedos rápidos, girava a objetiva e eternizava várias cenas. O silêncio do seu apartamento se casava perfeitamente com os cliques que sua câmera soltava no momento exato de registrar um transeunte.
Um dos amigos decidiu subir e ver as últimas fotos que Antônio amorosamente tirava. Ele via poesia em cada uma das cenas do fotógrafo. Tocou a campainha e o mundo do fotógrafo. Ele largou a câmera em sua mesinha de madeira, que ficava ao lado da janela e foi até a porta. Sorriu. "-Olá Antônio, é o Marcos, como está?". "-Olá, Marcos, entre amigo, estou bem. Acabei de me colocar na janela, pretendo tirar algumas pelas fotos hoje". "-Como sempre, como sempre!". Os dois riram. Marcos foi até o varal de fotos e começou a elogiar o trabalho de Antônio. Este, estava entretido entre os movimentos de closes e ângulos experimentais. "-E então Antônio, já conversou com os médicos". "-Já sim...semana que vem faço a operação". "-E está com medo?". O fotógrafo parou, encostou a câmera no peito. "-Tenho apenas medo de não dar certo. Essa escuridão mesmo sendo pacífica, me assusta. Sem contar que se não voltar a enxergar, acabarei tendo que me livrar de quilos de fotos que registrei do mundo enquanto não pude vê-lo". Marcos apenas chorava baixinho ao ver com tato todos aqueles registros de um cego permanente.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

O pecado de escolher

Nem todos são otimistas. Nem todos são pessimistas. Nem todos são bons e nem todos são ruins. Julgar não cabe a nós, pobres humanos cheios de defeitos. Cecília sempre pensava nestas frases.Às vezes, não nessa ordem, embora pensasse com frequência nos atos e desatos que a vida dá. Não gostava de escolher e preferia sempre não opinar. Era a melhor maneira de viver, segundo ela. Dizia que ao escolher um lado estava fadada a levar para sempre aquela escolha. Não que estivesse errada. Nem que estivesse certa. Simplesmente preferia que a vida a levasse, para longos passeios com diversas companhias sempre esperando por novas histórias, por novos contos mesmo que desses o que ela conhecia ficava só para si. Não era a favor do aborto. Mas, não sabia se era contra. Não gostava de homossexuais, mas também não tinha nenhum apreço pelos heterossexuais. Pensava sempre na porção exata e em como ela poderia ficar entre tudo. Sempre no meio de tudo. Um dia, enfim, no meio da linha veio um trem. E Cecília foi divida ao meio. Um lado lágrimas, do outro poesia.

sábado, 9 de outubro de 2010

O pecado de parar

Severino sempre foi um homem pacato. Entre tantos desejos, talvez não ter preocupações fosse o mais presente em sua vida. O ser não se preocupava com muita coisa. Se as pessoas lhe ofendiam. Ele fingia não ouvir e, já distante da pessoa, resmungava qualquer coisa sobre o fato de não se importar. Não gostava de ter compromissos, tanto que andava pela cidade sem relógio para poder se desculpar pelos atrasos ou adiantamentos em seus encontros pré-marcados. Sempre pensava que poderia ser feliz assim. E em sua calmaria nunca deu-se ao trabalho de se importar com prazos e metas finais. Cumpria tudo que lhe pediam, mas tinha seu próprio tempo para agir. Não gostava de regras, mas cumpria muitas delas para não ser questionado depois. Enamorou-se, casou, teve casa, teve carro, teve amigos, teve tudo que qualquer homem que andou pela terra e quis ter, teve.
Entre seus quereres, sempre manteve o modo não preocupado e de não magoar as pessoas. Seus filhos e sua esposa sempre lhe diziam para dar mais atenção as coisas, mas Severino negava-se a necessidade de se preocupar tanto com tudo. Sua filha mais nova, Helena, que era como a mãe, sempre dinâmica, sempre atenta, sempre cumpridora fiel de prazos e datas decidiu-se casar e para Severino, aquilo iria mesmo acontecer, como todas as coisas aconteciam no mundo.
A menina preparou seu enxoval, organizou a festa, convidou o povo, escolheu as roupas e entre tantos afazeres acabou irritada e nervosa. E cada vez que via o pai, se irritava mais com o modo parado de ser. Sempre ralhando com o homem, disse que ele deveria estar em casa às 4 da tarde para poderem seguir para a Igreja no carro que ela tinha escolhido e o casamento deveria começar pontualmente.
Severino, foi-se. Arrumou-se, penteou os cabelos e às 4 e 10 depois de muitos xingamentos da filha estava no carro com ela. A noiva desesperada com o atraso e o cronograma do casamento apressava o motorista que já estava ficando irritado. Severino apenas dizia para a menina ter calma, que aquele nervoso todo só faria mal. O motorista virou-se para concordar com Severino e deu de frente com um caminhão. Morreram Severino e o motorista e Helena entrou em coma. Foram anos até que a noiva abriu os olhos para o mundo. Seus sobrinhos-netos corriam pelo quarto e quando sua irmã a viu de olhos abertos ficou aos prantos. A moça de 55 anos não entendia porque aquela senhora chorava tanto. A mana contou tudo que havia acontecido e dos 30 anos que ela passara em cima daquela cama, naquele quarto e nas coisas que ela não foi e não participou. Helena parou. Chocada, se colocou em frente a um espelho no quarto de desabou em lágrimas.
A irmã perguntou porque chorava. A mulher só teve ar para dizer: "-Era isso que o pai queria? Que eu tivesse calma e eu não tive!". Foi tanto desespero que um infarto dominante matou Helena, que nunca vivera para ver o que a vida reserva de bom.

domingo, 3 de outubro de 2010

O pecado de esquecer

Antigamente, todos viviam em intensa harmonia. Segundo Rufus Wainwright, éramos seres estranhos com a cabeça muito grande e duas faces. Tínhamos dois pares de pernas e quatro braços e podíamos cantar enquanto líamos. Éramos completos. Até que os deuses, por medo de nossas ações, quiseram nos castigar. Então Zeus usou seus raios e dividiu-nos em dois. E um deus hindu curou nossa ferida e deixou um sinal na barriga para que não nos esquecêssemos que não podemos confrontar os deuses. E os deuses do Nilo chamaram uma tempestade e nos separaram...
Ouvindo "The origin of love", Camila ainda pensava no amor e nas coisas bonitas que já havia trocado com aqueles que amara. A casa estava escura, e sentada num canto da cama tomava um cálice de vinho. Sentia-se tão fria e inerte. As lembranças iam, aos poucos, lhe tirando o calor e fazendo parecer que cada vez ficava mais escuro. Entretanto, ainda eram 4h35 da manhã e a vida estava começando a acordar. Ela ainda tinha a maquiagem toda borrada e o sorriso quebrado. Ela já não tinha os cabelos penteados e nem o doce ardor dos olhos de quem sonha. Apenas a tristeza, a embriaguez e o silêncio a inundavam. A garrafa já estava vazia de vinho e Camila já não tinha uma gota de esperança. Decidiu ir para a sacada. Os cigarros que ela havia jogado estavam todos pela metade, em volta de seus pés. O vento era frio, mas de um frio aconchegante. Sentiu saudades da época de escola, do primeiro sutiã, do último namorado. Mas não se lembrava de mais nada, todas essas memórias eram vagas, borrada por uma espécie estranha de embriaguez. Não era o vinho. Ela estava farta do mundo. Pensou em pular. Acabar com tudo. Subiu na grade. Ouviu o vento. E de repente esqueceu pelo que estava ali. Desceu. Jogou-se na cama e dormiu pesadamente. No outro dia, a tarde, a luz do Sol que entrava pela janela acordou-a delicadamente. Camila foi para a rua, voltou ao trabalho, aos compromissos e a vida pacata e insossa que levava há anos, desde que perdeu seu último amor. Foram 60 anos de puro amargor e um ataque cardíaco fulminante que fizeram com que ela soubesse que ainda tinha um coração.

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

O pecado de mudar

Alberto sempre foi um menino responsável. Passa horas em cima dos livros, não atrasava prazos de entrega de trabalhos e sempre tirava boas notas. Sempre foi cordial com as pessoas e sempre tentou ajudar a todos. Na escola sempre foi um bom aluno e na faculdade formou-se com louvor. Sempre teve a atenção e o carinho de todos os que viviam ao seu redor. Claro que muita gente não gostava de Alberto, que era muito bonzinho e tinha um charme magnético. Foi para o mercado de trabalho. Todas as empresas que receberam seu currículo ficavam impressionadas com a quantidade de cursos e conhecimentos ele tinha. Deu-se bem em todas as possíveis empresas. Todos adoravam aquele homem que era sempre correto, sério, bem apanhado e muito charmoso. Até que um dia ele se apaixonou.
Clara era uma moça muito interessante. Trabalhava como publicitária em uma agência que estava propondo uma nova forma de comunicação para a empresa que Alberto era gerente. Ele, assim que a viu, ficou fascinado. Cortejou-a. Ela, assustada com esses modos de rapaz inglês, sorriu e disse não. Ele a convidou para jantar. Ela recusou. Ele perguntou se ela gostava de cinema. Ela dizia adorar os filmes de Almodóvar. Ele chamou-a pra assistir Abraços Partidos. Clara disse não. Sempre dizia não aos convites dele.
Mas ele, como todo galante bom moço não desistia. Muitos outros convites fez, aos programas mais variados. Até para um sexo casual ele a convidou e foi respondido dessa última vez com um tapa. Ela sorriu e disse não todas às vezes, inclusive com o bofete que lhe deu. Um dia, cansado de tentar tantas vezes e cheio de coisas para fazer, Alberto entrou no elevador com ela e a cumprimentou respeitosamente. Ficou em silêncio grudado na parede do elevador pensando o que ela estaria pensando dele. Ela sorriu, disse bom dia e seguiu para a sala do chefe.
Por que será que ela não queria sair com ele? Por que não dava a ele a chance de tentar? Todos diziam que ele era um bom partido, ele sempre ouvia isso. Mas até aquela mulher aparecer em sua frente, nunca tinha se encantado tanto por alguém. Então, convicto de como poderia fazer bem a ela, Alberto parou o elevador quando eles estavam novamente sozinhos dentro daquela gaiola de ferro. Olhou-a enquanto ela pegava um batom da bolsa e dizia para ele seguir com o elevador.
Ele disse que queria saber porque ela nunca lhe dava uma chance. Ele era um moço honesto, trabalhador, promissor, interessante e poderia fazê-la feliz, porque ela não via isso. Clara mudou a expressão da face de angústia. Ela sorriu sem graça e disse: “-Não quero me aproximar de você. Perfeito, bonito, inteligente, promissor. É demais pra mim. Sou humana, erro, gosto de beber e tenho erros”.
Alberto apertou o botão que fazia o elevador andar. Eles pararam no andar onde Clara iria ficar. Ela saiu sem graça e muito silenciosa. Ele desceu, chegou até seu carro e saiu da empresa. Foi a primeira vez que ele decidiu matar o expediente. Foi até a praia. Tirou todo o terno, os sapatos e nu pulou no mar e sentiu a água salgada levando embora tudo que ele tinha vivido ou acreditado. Decidiu que seria diferente, que seria mais intenso, mais humano, que cometeria mais erros, que seria feliz.
Colocou o pesado terno e entrou no carro. Foi ultrapassar um caminhão, pela primeira vez, sentiu-se vivo de desrespeitar às regras e entrou em desespero ao se dar de frente com uma van escolar, desviou, bateu em um poste e morreu cometendo seu primeiro erro.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

O pecado de crer

Beatriz era muito religiosa. Desde quando começou a falar, já dizia coisas sobre Deus. Muitos diziam que ela era santa, era algum anjinho desses que vêm a terra para levar luz às pessoas. Sempre gostou de caminhar entre os "irmãos" dando sorrisos e cumprimentando a todos. Era doce e muito fervorosa. Sabia como ninguém compreender os sermões que os padres davam durante a missa. Tentava se abster de todos os pecados que pudesse. Levava boas palavras para pessoas que ela julgava perdidas e tentava sempre alimentar as esperanças daqueles com quem vivia.
Estava na frente de uma lagoa, em uma noite límpida, olhando o milagre da vida e as belezas que "seu" Deus havia criado. Um homem passou por ela e quando a menina disse boa noite, ele disse que não era um bom momento. Sempre com sua mania de ajudar, ela o seguiu e viu que ele se colocava diante da ponte para pular. Desesperada, Beatriz, que tem na origem do nome o significado de enviada por Deus, foi até ele e perguntou porque ele acabaria com sua vida. Ele a olhou muito plácido e disse que nada mais tinha sentido. Era dependente químico, havia sido criado por um padrasto horrível que o molestava e o agredia, tentou várias vezes ser feliz, amou muitas pessoas, tentou conseguir um emprego, fazer da sua vida algo digno, mas nunca conseguiu. Ela, que a tudo ouvia, pensava que talvez se ele soubesse que Deus o amava, ele não faria isso. Sorriu complacente e começou a dizer sobre o que acreditava e como era importante que ele soubesse que Deus o amava e que ele poderia ter uma boa vida, que ele devia tentar mais uma vez, porque a divindade olharia por ele.
O homem sorriu, perguntou qual era seu nome, ela o respondeu dizendo que se chamava Beatriz e que se ele quisesse conversar poderiam passar bastante tempo dialogando e que ela tentaria o ajudar. Ele disse que ela já havia ajudado em sua decisão. O sujeito abriu os braços, e lentamente, enquanto as lágrimas escorriam pelo seu rosto, começou a orar. Lágrimas, ele e suas palavras se espatifaram contra o asfalto. Beatriz chorou e naquele momento esperou ouvir ou sentir a presença de Deus. E o vento soprou friamente levando aquele odor de tristeza.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

O pecado da fome

Carlos era um homem que tinha fome. Não uma fome comum, como aquela que todos os dias saliva sua boca próximo das 11 horas da manhã. Era uma fome intensa, que o fazia pensar em quitutes e guloseimas em todos os minutos de sua vida. Queria sempre repetir o prato, comer mais um, pegar outro pra depois. E nunca estava satisfeito. Sempre sentia fome.
Uma tarde, dessas quentes e preguiçosas que se esgueiram, ele passou na frente de uma doceria. E, no balção de doces, talvez ele tivesse encontrado algo que mataria sua fome para sempre. Jeanine, uma moça muito bonita e de mãos delicadas, colocava um bolo de chocolate naquele momento. Como aquela cena lhe dava fome.
Ele entrou, pediu um café e um pedaço do bolo. Jeanine sorriu. Retirou uma generosa fatia e pegou uma xícara de café. E em segundos, os dois recipientes estavam limpos, como se nada tivesse sido colocado. Ele repetiu o pedido. Ela, serviu mais uma vez. E mais alguns segundos, ele repetiu o pedido com a boca ainda cheia e manchada de chocolate. Enquanto ela servia, ele lhe contou que nunca tinha provado algo tão gostoso. Ela sorriu. Colocou o prato e a xícara e enquanto Carlos levantava o garfo ela disse: "-Se você gostou do sabor, agora experimente comer cada garfada delicadamente, como se fosse sua última refeição". E, de repente, o homem parou, ficou pensando nas palavras daquela doce doceira e se conseguiria fazer aquilo. Imagina, comer lentamente, a última refeição. Tirou uma teco do bolo, colocou na boca e começou a mastigar. Os gostos foram povoando a sua boca. No primeiro gole de café, o amargor e o tom doce do final daquela golada, foram queimando e refrescando suas papilas. Depois de uma hora degustando aquele prato, Carlos terminou sua refeição. Sentiu-se tão cheio, tão satisfeito que tentava compreender toda a dinâmica do mundo. Pagou, agradeceu e saiu. Foi viver, afinal, agora sim ele sabia como funcionava toda aquela ideia de existência.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

O pecado de acreditar

Ele a amou a primeira vez que a viu. Simples assim, como a relva orvalhada no começo da manhã. Ela tinha toda a vivacidade que ele precisava. Era terna, era altiva, era interessante como um botão de rosa ao despertar. Se conheceram num baile de carnaval e, como por coincidência, ele estava de Pierrô e ela de Columbina. Foram feitos para sempre naquela eterna caça de um gato em busca de sua presa.
Passava dias a esperá-la depois do fatídico baile, no caminho que ela fazia todos os dias à tarde, em direção ao estúdio de ballet. Mesmo que pareça piada, seu apartamento ficava na rua que todos os dias a bela moça passava com as sapatilhas penduradas nas mãos e, docemente, ela seguia pela rua desviando com piruetas de placas e transeuntes que cruzavam seu caminho. Ele a via resplandescente, iluminada, como uma estrela em sua aurora.
E em sua volta, à noite, mantinha um sorriso doce como se sua tarde tivesse sido tão perfeita como era sua existência. Depois de vê-la sumir em uma esquina, o poeta se colocava na frente de seu computador e desatava a digitar. Eram estalos eufóricos como se ele estivesse atrasado para entregar a última matéria que compunha a página principal do periódico da próxima manhã.
E, em tantos contos e poemas, imaginava como seria a partir do momento em que pudesse tocá-la e beijá-la e sentí-la. Vivia esperando suas passadas pela janela de sua casa e criava sonhos e pensamentos ideais de como seria perfeita sua vida assim que ela fizesse parte de seu cotidiano. Alguns meses passaram...A menina já não passava mais pela rua em frente a sua janela. Havia morrido em um desastroso acidente no mar. A lancha onde estava havia batido contra rochas e o mar engoliu sua beleza.
E nos mesmos horários, o velho botava-se a escrever sobre o prazer que teria quando ela fizesse parte da sua vida. E ele lembrava todos os dias do primeiro sorriso que ela deu para ele, um dia antes do acidente, há 50 anos do hoje que ele vivia. Amar é apegar-se ao que sentimos, não ao que existe.

domingo, 26 de setembro de 2010

O pecado de ser

Ele nasceu. Tão belo e interessante como essas estrelas pequenas que a gente descobre em noites de céu claro. Estava ali um pequeno abençoado pelos olhos de familiares. Tinha os olhos acinzentados, tinha um ar ingênuo como muitos dos bebês que nascem por aí. Era um menino. A partir desse momento e para toda sua existência carregaria no mundo as marcas que um menino deve ter. Seu quarto era azul,cheio de carrinhos e heróis que o pai gostava. Sua mãe o ninava esperando que ele crescesse e fosse um grande homem. O que ele teria feito para ter tantas responsabilidades? Nascer já bastava.
E esse menino crescia ao redor de coisas preparadas para desde antes do nascimento dele. Teria o mesmo do avô materno e a partir disso, levaria para sempre aquela expectativa de ser. A família dizia que ele seria engenheiro, médico ou advogado. Brincaria de carrinho, teria vários "ralados" de skate, de bicicleta. Teria um cachorro felpudo e grande. Seria menino.
Aos poucos junto com a idade, o menino começou a falar. E queria rosa, enquanto os presentes eram todos azuis. Seria o herdeiro do nome, mais que isso, do sobrenome da família. Nasceu para herdar as ordens de um bom patriarca. A vida foi passando. Cresceu tanto quanto podia e, mesmo não querendo, jogava futebol, vivia rodeado de meninos e não entendia como eles podiam ser tão agressivos. Apanhou, bateu, cresceu. Se apaixonou por longos cabelos loiros. Uma professora do primário. Bela, tão linda e intensa quanto o Sol. Cresceu...sofreu por paixões que não conseguia viver.
E, de repente, já tinha dezesseis, pelos nas pernas, pelos na virilha, pelos no rosto. Não gostava de ter aquela aparência. Mas continuou crescendo. Queria ter a pele lisa, queria ter sorrisos mais doces. Foi aos poucos se afastando de pessoas. Não gostava de conviver com aqueles que impunham tanto. Não queria ser como todos, queria ser diferente. Entre medicina, engenharia ou direito, ele foi fazer cênicas e em sua primeira vez no palco se sentiu tão a vontade com a ideia de ser alguém que não se era. Não precisava usar o nome do avô, nem ter pelos pelo corpo. Se sentia bem quando sorria delicadamente entre palmas fervorosas e luzes que clareavam seus belos olhos, já castanhos, já humanos, já mais pecadores.
E aos poucos, já não usava mais tênis estilosos e nem calças jeans, já não precisava mais de cintos lhe apertando os quadris. Usava um solto vestido branco, e com os pés descalços ria e rodava sobre o palco, contando a história de uma moça. Uma que vivia presa numa torre e que seria uma princesa esquecida. Como essas histórias que a gente ouve quando criança. Era tão bom estar em um personagem.
Foi tirado a força do palco, seu pai dizia-se envergonhado com a "bichice" que ele dramatizava. Ele era homem. HOMEM! E com a maquiagem toda desmanchada entre lágrimas e com o corpo todo dolorido das puxadas que sofreu do pai e de toda a sociedade. Ele não era uma mulher, não tinha o direito de estar em um vestido. E nem de ser feliz não levando o nome de seu avô. Devia voltar à realidade. Ser engenheiro, médico ou advogado. Devia ser um homem de família.
Não foi. Em uma noite sem estrelas, as luzes de seus olhos apagaram enquanto um desfile vermelho escorria pelo vestido branco que ele vestia e uma onda negra que caía de seus olhos deixou seu rosto todo desfigurado pela maquiagem que já escondia alguém que ele não era. Não era ele. Não era sua personagem. Com tantas exigências ele foi perdendo sonhos como agora o sangue manchava de vermelho o vestido que lhe caia tão bem. Queria ser livre e talvez agora fosse, já com os olhos pintados de um preto fosco e seu corpo frio, estirado em um palco, dramatizando o eterno pecado de ser alguém que não queria ser tudo que lhe foi imposto.