quinta-feira, 14 de outubro de 2010

O pecado de enxergar

Hoje foi um dia nublado. Como desses dias que a gente prefere não sair para não se molhar. Antônio decidiu ir até a janela, com sua câmera fotográfica, olhar os passantes e registrar suas vidas em alguns momentos pintados com luz. Tinha esse costume doce de registrar pessoas e vidas, para depois, no silêncio de seu banheiro-sala de revelação, poder imaginar quem eram as pessoas, o que viviam , com o que sonhovam, se amavam, se tinham grandes objetivos e tantos outros detalhes que são úteis para todas as vidas humanas. Alguns amigos brincavam que Antônio gostava desse voyerismo por pura falta do que fazer. Depois do acidente que teve vivia em um apartamento aconchegante e poucos eram os motivos que lhe tiravam dali. Alguns amigos, alguns eventos e a fome o tiravam daquele silencioso ambiente em que ele passava horas com sua câmera a captar a vida dos passantes,sem grandes anseios, apenas para imaginar o que poderia acontecer, como esteve fazendo no dia de hoje. Com a câmera posicionada e os dedos rápidos, girava a objetiva e eternizava várias cenas. O silêncio do seu apartamento se casava perfeitamente com os cliques que sua câmera soltava no momento exato de registrar um transeunte.
Um dos amigos decidiu subir e ver as últimas fotos que Antônio amorosamente tirava. Ele via poesia em cada uma das cenas do fotógrafo. Tocou a campainha e o mundo do fotógrafo. Ele largou a câmera em sua mesinha de madeira, que ficava ao lado da janela e foi até a porta. Sorriu. "-Olá Antônio, é o Marcos, como está?". "-Olá, Marcos, entre amigo, estou bem. Acabei de me colocar na janela, pretendo tirar algumas pelas fotos hoje". "-Como sempre, como sempre!". Os dois riram. Marcos foi até o varal de fotos e começou a elogiar o trabalho de Antônio. Este, estava entretido entre os movimentos de closes e ângulos experimentais. "-E então Antônio, já conversou com os médicos". "-Já sim...semana que vem faço a operação". "-E está com medo?". O fotógrafo parou, encostou a câmera no peito. "-Tenho apenas medo de não dar certo. Essa escuridão mesmo sendo pacífica, me assusta. Sem contar que se não voltar a enxergar, acabarei tendo que me livrar de quilos de fotos que registrei do mundo enquanto não pude vê-lo". Marcos apenas chorava baixinho ao ver com tato todos aqueles registros de um cego permanente.

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